Reportagem aborda as iniciativas adotadas para garantir trabalho digno aos povos originários
Indígena de cocar. Foto: Nelson Jr./STF
Trabalho, na vida de um ser humano, pode ganhar diferentes significados simbólicos, econômicos, culturais e filosóficos. “No caso dos povos originários, o trabalho está relacionado à inclusão social e produtiva, mas também ao território. E não se pode falar em povos indígenas sem lembrar a identidade entre corpo e terra”, explica a subprocuradora Geral do Trabalho Edelamare Melo, autodeclarada indígena, coordenadora Nacional do Grupo de Trabalho dos Povos Originários, Comunidades Tradicionais e Periféricas do Ministério Público do Trabalho.
Segundo ela, trabalhar a terra é meio de obter condições de vida digna e de preservar a natureza e o que ela propicia como meio de subsistência. Assimilar esses contextos é ponto de partida para compreender os complexos desafios que se apresentam para garantir liberdade, dignidade e trabalho decente a esses povos.
Piores formas de trabalho
O problema é que são muitas as violações de direitos, diante de tamanha vulnerabilidade a que eles estão sujeitos.
Aldeados, vivendo em áreas remotas e de difícil acesso, com pouco ou nenhum acesso à informação e a serviços públicos, eles ficam expostos a ameaças a direitos básicos e à própria existência. Elas vão desde o dano sobre recursos naturais causado por diferentes atividades econômicas (legais ou não) até o aliciamento para as piores formas de trabalho, segundo classificação da Organização Internacional do Trabalho.
“Muitos trabalhadores indígenas são submetidos a formas de exploração e escravização, incluindo o trabalho forçado, a servidão por dívida, a retenção de documentos, o pagamento de salários abaixo do mínimo legal, a jornada excessiva, a falta de descanso e condições de trabalho insalubres. As mulheres ainda enfrentam desafios adicionais, como a violência de gênero e o assédio e a exploração sexual”, destaca Jônatas Andrade, juiz auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça. Magistrado do trabalho do Tribunal Regional da 8ª Região (PA/AP), ele tem forte atuação contra o trabalho escravo e é um dos 11 magistrados brasileiros que se autodeclaram indígenas.
Segundo dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, 675 indígenas foram resgatados em condições análogas às de escravidão entre 2002 e 2022. Isso representa 3% do total de resgates. Também são investigadas denúncias de aliciamento para a prática de crimes, como tráfico de drogas. No Brasil, 0,4% da população se autodeclara indígena, conforme o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Contudo, segundo a procuradora Edelamare, há subnotificação.
Atividades econômicas
As atividades econômicas que submetem indígenas a condições precárias de trabalho variam conforme a região. “No Norte, é basicamente mineração ilegal e agronegócio. No Nordeste, o cultivo da cana de açúcar, as carvoarias e o extrativismo vegetal. Há registros da migração de indígenas do Centro-Oeste para o sul para a colheita de maçã”, exemplifica Edelamare Melo.
Impactos ambientais
A degradação ambiental também aumenta vulnerabilidade das comunidades. Estudo realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) identificou que, entre 2011 e 2019, 74% das terras indígenas no Brasil ficaram mais expostas a ameaças ambientais, em relação ao período de 2001 e 2010.
O estudo, chamado “Avaliação da vulnerabilidade ambiental das Terras Indígenas da Amazônia Brasileira”, aponta como problemas a expansão do desmatamento, os incêndios, a proximidade com rodovias, a degradação florestal e o avanço da mineração e da agropecuária. Esses impactos afetam, entre outras coisas, a disponibilidade de alimento e água. “Muitas vezes, essas pessoas se submetem a uma posição degradante de trabalho por imperativo de necessidade. Trabalham em troca de comida. Discordar, por vezes, pode levá-los à morte”, alerta a subprocuradora-geral do trabalho.
Preconceito e discriminação
O juiz Jônatas Andrade observa que muitos indígenas ainda se veem obrigados a migrar para as cidades. Sem formação, ficam sujeitos a condições precárias de trabalho. “Infelizmente, os povos indígenas têm sido historicamente marginalizados e explorados, e a violação de seus direitos trabalhistas é um reflexo disso”, salienta o magistrado.
Quando buscam trilhar uma trajetória que viabilize sua inserção no mercado de trabalho, Edelamare Melo destaca que eles se expõem a outros problemas: falta ou dificuldade de se manterem nos sistemas formais de educação, preconceito, discriminação racial e cultural.
Desafio complexo, medidas necessárias
Para o juiz, a garantia de condições dignas de trabalho para os povos indígenas é um desafio complexo que requer ações coordenadas do Estado, dos empregadores, da sociedade civil e das próprias comunidades indígenas. No entanto, ele ressalta a obrigação de consultar comunidades indígenas antes de se tomarem decisões que possam afetá-las diretamente, como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Dessa forma, além de incluir as comunidades indígenas no processo de tomada de decisões e garantir sua participação na elaboração de políticas e programas, é importante “estimular o empreendedorismo e a economia solidária, promover a formação e qualificação profissional, respeitadas suas características culturais, e garantir o cumprimento dos direitos trabalhistas”.
Acesso à Justiça
Aproximar as instituições do Sistema de Justiça dos povos indígenas é uma das medidas que contribuem para ampliar o acesso a informação e direitos. Também é importante transpor barreiras culturais e linguísticas, com respeito a essas comunidades. Para isso, existem normativos com força de lei que devem ser cumpridos pelos agentes públicos.
No caso do Poder Judiciário, a Resolução 454/2022 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estabelece diretrizes e procedimentos para efetivar o direito de acesso ao Judiciário a pessoas e povos indígenas. O texto prevê, por exemplo, a comunicação por meio de diálogo interétnico e intercultural, de forma a assegurar a efetiva compreensão, pelo povo ou pela comunidade, do conteúdo e das consequências da comunicação processual. A resolução também autoriza o juízo a determinar a produção de exames técnicos por profissional da Antropologia, a fim de que se conheçam as especificidades socioculturais do povo indígena.
Ainda no Poder Judiciário, outras duas normas do CNJ tratam da temática: a Resolução 299/2019, que dispõe sobre o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência; e a Resolução 287/2019, que estabelece procedimentos ao tratamento quando pessoas indígenas são acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade. Também dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população na área criminal.
No âmbito do Ministério Público, o normativo que disciplina a atuação junto aos povos e comunidades tradicionais é a Resolução 230. Ela destaca que cabe ao MP o diálogo intercultural permanente, a aproximação e o estabelecimento de vínculos com os povos e as comunidades tradicionais, por meio de linguagem acessível e informação clara sobre suas atribuições, bem como escuta permanente sobre as demandas dos grupos. Também sugere a adoção de uma rotina periódica de visitas aos territórios, para acompanhar demandas e apresentar informações.
“Eu posso chegar a uma aldeia e fazer registro de carteira de trabalho para os indígenas? Não posso, salvo se ele declarar que está numa relação de trabalho sem a carteira. Porque a relação de trabalho dele é com a terra”, explica a subprocuradora-geral do Trabalho. “As resoluções do CNJ e do CNMP trabalham com a questão do diálogo intercultural, com o conceito de território, e dão uma métrica para nossa atuação”.
Justiça do Trabalho
A aproximação da Justiça do Trabalho com os povos indígenas demanda o deslocamento de estruturas de pessoal e física até eles. “Realizar audiências e julgamentos em locais próximos às comunidades indígenas facilita o acesso dos trabalhadores à Justiça”, ressalta Jônatas Andrade. Essa aproximação se dá por meio da chamada Justiça Itinerante, que, na Justiça do Trabalho, existe desde 1995. A prática foi institucionalizada dez anos depois em toda a Justiça, com a Reforma do Judiciário (Emenda Constitucional 45/2004).
Jônatas Andrade também salienta a importância de estabelecer parcerias com associações e lideranças indígenas, a fim de facilitar o diálogo entre a Justiça do Trabalho e as comunidades. Também defende ações de capacitação de agentes públicos e advogados sobre as especificidades culturais e linguísticas de trabalhadores indígenas, além de campanhas de divulgação e informação sobre os direitos trabalhistas dessas comunidades indígenas, com materiais de fácil compreensão e que levem em conta as particularidades culturais das diferentes etnias.
Passado e futuro
Foi em agosto de 2003 que, pela primeira vez, a Justiça Itinerante promoveu uma audiência trabalhista em uma terra indígena. Foi na aldeia de Jaguapiru, em uma reserva próxima a Dourados (MS). O representante do Tribunal Superior do Trabalho, na ocasião, foi o ministro Lelio Bentes Corrêa, que hoje preside a a Corte.
De 106 audiências realizadas em Jaguapiru, 32 resultaram em acordos entre indígenas e usinas de álcool e açúcar. A maioria dos trabalhadores reivindicava depósitos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e direitos como férias, 13º salário e anotação do tempo trabalhado em carteira.
No fim de junho deste ano, o ministro deverá participar de outra iniciativa. Trata-se do projeto Itinerância Oiapoque, que promoverá, entre outras atividades, reuniões com comunidades de povos originários. A Justiça Trabalhista, por meio do TRT-8, atenderá a demandas trabalhistas e promoverá ações de educação sobre trabalho escravo, trabalho infantil e direitos trabalhistas. O projeto também disponibilizará uma série de serviços em parceria com outros órgãos públicos.
Àwúre
No idioma africano iorubá, Àwúre significa bênção. Esse é o nome de um projeto desenvolvido pelo MPT, pela OIT e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) para promover o respeito pela identidade, diversidade e pluralismo de comunidades tradicionais.
Além de encaminhar denúncias e demandas, o objetivo é resgatar as comunidades de maior vulnerabilidade por meio de inclusão social e produtiva. As ações promovem os equipamentos e a formação técnica necessária para a produção agroecológica e sua comercialização, com respeito e fortalecimento da identidade cultural. Segundo a subprocuradora-geral, o foco é a destinação do excedente gerado na produção de alimentos para garantir a subsistência, respeitando hábitos e tradições dos povos originários.
(Natália Pianegonda//CF)
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